Os recentes episódios envolvendo fraudes no transporte de leite no Rio Grande do Sul, caprichosamente às vesperas do Dia das Mães, expuseram mais uma vez fragilidades na cadeia de fornecimento de leite e nos remeteram de volta a 2007, quando foi deflagrada a Operação Ouro Branco, nos dando a talvez falsa sensação de que, nesses 6 anos, pouco avançamos nesse quesito.
Garantir a qualidade não é tarefa fácil em um mundo globalizado. Com cadeias de suprimento cada vez mais longas e com o aumento da escala, perde-se o contato com etapas de produção que, antes, eram acompanhadas de perto pelas empresas. Tivemos recentemente o caso da carne de cavalo na Europa; uma empresa processa, vende para outra, o produto é embalado com uma marca de um terceiro e, finalmente, ganha o mercado. Não raro, um produto alimentício tem ingredientes provenientes de diversos países, como uma linha de montagem global.
Garantir a qualidade e a conformidade de cada ingrediente e de cada etapa de produção passa a ser um significativo desafio, ainda mais quando a busca incessante por custos mais baixos para competir faz com que fornecedores digamos, menos tradicionais, sejam selecionados – como foi o caso da carne romena, que continha carne eqüina no meio da bovina. O problema é que esse produto, ao ser embalado sob determinada marca, evidentemente passa a ser identificado como tal junto ao mercado. A solução passa por um rigoroso processo de certificação dos fornecedores, além de monitoramento da qualidade, o que gera custos extras que, no curto prazo, pressionam os resultados, mas que, no longo prazo, garantem a sustentabilidade do negócio.
Em 2008, na China, um episódio de fraude na cadeia do leite gerou efeitos que perduram até hoje. Naquele episódio, intermediários utilizaram melamina, um produto que eleva a proteína do leite e, de quebra, gera falência renal para quem o consome.
Mais de 200 mil bebês foram afetados, já que o produto foi vendido para uso em fórmulas infantis, ironicamente onde mais se agrega valor quando se pensa em uso nobre para o leite em pó. Empresas quebraram, a produção estacionou e abriu-se espaço para o aumento das importações, resultando assim em grande parte do volume importado pela China desde então, fazendo a festa dos neozelandeses e norte-americanos que ocuparam este mercado. O chinês perdeu a confiança no produto nacional e prefere pagar um prêmio pelo produto importado. Para refletir.
Não é realista achar que alguém está imune a fraudes, até porque os fraudadores podem aperfeiçoar seus métodos e ingredientes. Entendo ser necessário atuar em 3 frentes imporantes:
a) Penalizações significativas para infratores, tornando a infração menos atraente. Considerando os 100 milhões de litros de leite transportados pelas empresas infratoras entre abril de 2012 e maio de 2013, segundo matéria do jornal Estado de S. Paulo, e supondo um preço médio de R$ 0,85/litro, tem-se que, a grosso modo, 10% de “economia” no leite através da fraude resultaria em ganhos extras de R$ 8,5 milhões caso 100% desse leite tenha sido fraudado. Independentemente se os valores são esses, o fato é que os ganhos são elevados quando se multiplica centavos por milhões por dia e, como tal, precisa receber punições que tornem esse grande negócio menos atrativo.
b) Fiscalização. Não sou especialista em inspeção e, portanto, não irei muito além nessa questão além de revisitar temas que já são por todos conhecidos. Unificação dos sistemas de inspeção municipal, estadual e federal; aprovação do RIISPOA para que tenhamos o marco legal da IN 62 definido, capacitação dos laboratórios se necessário e mudanças no formato de inspeção são medidas importantes para que, em uma cadeia complexa e pulverizada como leite, consigamos garantir à população o consumo de um produto sempre seguro e que possa ser exportado a outros mercados.
c) Ações empresariais e setoriais. Além da fiscalização oficial, cabe às empresas evitar que o produto adquirido no mercado e embalado com sua marca tenha ingredientes que não deveriam ter. Em última análise, o investimento em fazendas próprias e controle de todo o processo por parte da Fonterra na China e na Índia (e, futuramente, no Brasil), com integração total, é um exemplo extremo disso. No sistema brasileiro, a questão é como apertar o cerco individualmente, gerando custos extras e, não raro, restrições relativas ao volume de leite adquirido, quando o mercado não sabe diferenciar o joio do trigo, dificultando a agregação de valor, e quando o volume de leite processado não pode ser perdido.
A solução para isso seria uma ação conjunta, de diversas empresas. Por exemplo, um selo de qualidade e conduta, com normas até mais rígidas do que as oficiais, levados a cabo pelas próprias empresas do setor, com auditoria externa. Aliado ao selo, uma forte campanha de esclarecimento e marketing visando a agregação de valor ao produto certificado poderia ser realizada. Se as principais empresas se empenharem nisso, aos poucos mudamos o mercado. Não é tarefa fácil, nem rápida.
Isso nivela as empresas e os investimentos em marketing feitos pelas marcas, já que todos teriam uma chancela comum? Acredito que não. Afinal, mesmo com selo oficial de inspeção, o que também em tese é um nivelador, evidentemente há espaço para posicionamentos específicos que agregam valor às marcas que souberem explorar o mercado.
O desafio é fazer isso acontecer quando não temos, junto às empresas e ao setor, uma agenda de longo prazo, fundamental para que uma visão assim seja buscada ainda que o cenário de curto prazo seja desafiador: margens baixas, fábricas ociosas e escassez de leite.
Mas qual é o problema de termos tido uma Ouro Branco há alguns anos, e agora um Leite Compen$ado? O mercado continua crescendo e, até que se prove o contrário, os problemas são pontuais.
Acredito que o buraco é mais embaixo. O risco de uma não-conformidade aqui e ali, como temos observado, gera efeitos diretos nas empresas envolvidas, mas também abalam a imagem do produto e do setor. Basta olhar as redes sociais e perceber que o estrago é grande. Sempre que há esse tipo de crise, surgem comentários do tipo “só vou tomar suco”, “bom é o leite direto da vaca”, “leite é só para bezerros, etc”. Vejam abaixo um pequeno exemplo disso, ficando claro que os efeitos não são positivos:
Exemplos de manifestações de consumidores a respeito das fraudes:
Laercio Borges: “Saudável mesmo era quando a gente comprava o leite que vinha do sítio, na garrafa PET, esse sim era puro, só que o produtor não pode ganhar um pouquinho mais vendendo para o povo, tem que entregar nos laticínios pra esses vagabundos colocarem todas essas porcarias no leite das crianças. É como dizia Bóris Casoi, ISSO É UMA VERGONHA…”
Ana Paula Talavera: “Go vegan”
Barbara Duarte: “Tô fora de tomar leite…”
Eli Gomes: “Dizem que o mundo é dos espertos, eu não concordo, porque a esperteza um dia é descoberta e se torna em vergonha. Enquanto isso, devemos tomar cuidados com o que consumimos, melhor é tomarmos leite nas tetas das vacas do que nas tetas da indústria, porque essa está produzindo CÂNCER e muitas outras doenças nas pessoas. Esse capitalismo extremo passa por cima de qualquer regra de boa qualidade de vida em nome da usura por lucros a qualquer preço. ”
Priscila Pereira: “Ta é difícil comer sem estar adulterado. O jeito mesmo é todo mundo virar vegetariano… kkk… por enquanto né”
Kelen Sales: “Absurdo isso, falta de respeito com a vida do ser humano… ”
Sil Lanza: “De todo modo tomar leite é apenas um mito criado pela indústria! Não precisamos de leite! somente o da mãe nos primeiros meses de vida! De todo reino animal, o homem é o único animal que continua a tomar leite após a primeira infância!O leite precisa apodrecer em nosso organismo para ser processado! Então bom mesmo é não tomar leite, ou só de soja! Com frutas é ótimo! ”
Aparecida Fátima Marques: “A que ponto chegamos… ”
Claudia Amaralina: “Pra minha filha de 3 anos suco só da fruta, e mesmo assim não dá pra confiar, e agora com o leite? Não posso ter uma vaca, a saída agora está sendo ferver bem, mas não sei se o que adicionam some no aquecimento, e agora? ”
Alex Sander: “Adulto não precisa de leite ”
Nobre Administração e Marketing: “A pediatra do meu filho diz sempre para ele ‘leite é para bezerro; e você, o que é?’ Mas, independente de ser para bezerro ou não, é uma vergonha tal situação de empresas só para garantir a permanência no mercado.”
Rose Tripoloni: “Suco…leite…onde isso vai parar???? ”
Marcos Souza Pires: “Queremos ter vida saudável e agora é perigoso até tomar Leite… rs… tenso hemmm ”
Há quem diga que, passada a crise, tudo volta ao normal. Um pensamento como esse é cada vez mais equivocado. Analisando o passado recente, o leite já não é réu primário nessa questão, o que pode levantar dúvidas no consumidor a respeito da extensão e cronicidade do problema: será que o leite é, no geral, saudável? Será que os problemas são mesmo pontuais? Além disso, o consumidor hoje está mais informado, tem mais opções de consumo e não tolerará mais comprar gato por lebre.
Dentro dessa realidade, é bastante óbvio que episódios como o da semana passada contribuem ainda mais para desvalorizar o produto. É interessante notar que o baixo valor do leite ao consumidor e o valor relativo elevado da matéria-prima em relação aos preços de venda tem sido motivo de queixas do setor. E com razão.
Dados apresentados na 31a. Reunião do Conselho Diretivo da FEPALE (Federação Panamericana de Leite), em Juiz de Fora, MG, mostram que, entre os países latino-americanos, o Brasil apresenta uma relação entre preço do leite UHT ao consumidor e preço ao produtor pior do que os países exportadores (gráfico 1).
Gráfico 1. Preços do leite UHT ao consumidor/preços ao produtor em países da América Latina no mês de março de 2013 (Fonte: Reunião do Conselho Diretivo da Fepale, 2013; exceto Brasil – Fonte: MilkPoint e Cepea, 2013)
Evidentemente, essa relação tem dois fatores: o custo da matéria-prima e o preço de venda. Dessa forma, a relação pode ser baixa por qualquer um dos fatores, ou por ambos. Temos enfatizado muito a elevação dos custos de matéria-prima como o aspecto predominante, mas os preços de venda ao consumidor também têm sua parcela nessa questão.
Fazendo uma reflexão mais ampla, apesar de verificarmos um dos mais altos crescimentos de consumo no mundo, pulando de 123 kg/pessoa em 2001 para 173 kg em 2012, não fomos eficientes em elevar o valor do produto (talvez não fosse possível mesmo atuar nas duas frentes com tanta eficiência, já que há elasticidade-preço para o consumo de lácteos). De certa forma, o grande crescimento que tivemos em volume foi obtido às expensas do valor, o que gerou um problema de rentabilidade crônica no setor, principalmente depois que a matéria-prima se valorizou.
Nesse período, muitas empresas tiveram dificuldades, endividando-se acima do tolerável, resultando em falência, recuperação judicial ou venda de ativos. As margens do setor, em geral, têm se mantido baixas.
Melhorar a percepção do produto junto ao consumidor por meio de ações consistentes é fundamental para que possamos crescer. Afinal, é pouco provável, que vamos manter para frente, indefinidamente, a taxa de crescimento do consumo alcançado nos últimos anos (e, mesmo se mantivéssemos, a história recente mostra que volume sem valor gera resultados ruins). Também, é pouco provável que tenhamos um enorme aumento de eficiência na produção, em curto espaço de tempo, de forma a reduzir os custos de produção e captação de leite. Assim, precisamos melhorar o valor de venda e atuar na comunicação ao mercado.
Nesse ponto, não bastam mais ações envolvendo campanhas do tipo “Beba leite”, com vaquinhas simpáticas ilustrando comerciais que consomem milhões em poucos segundos. O consumidor quer algo mais. É preciso que a comunicação seja embasada em ações efetivas, claras e consistentes de controle de qualidade. Atributos de imagem para isso, o leite tem. Ainda.
Fácil, não é. Mas há esperança de mudança. Afinal, crises são sempre momentos de se repensar o que se faz e de explorar novas oportunidades. O exemplo da fraude no RS nos mostra que, mais uma vez, temos a oportunidade e a necessidade de fazer a lição de casa no setor lácteo.
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